Pesquisadores articulam saberes e ações para enfrentar crises sanitárias e ambientais

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Saúde Única reconhece que a saúde de humanos, animais e ambientes compõe um mesmo sistema - Foto: Pexels

Paiva Rebouças – Sala de Ciência-Agecom/UFRN
Fotos: Geasu/Cedidas

Um fungo na pele de um gato vira ferida em mais de um organismo. A micose, invisível aos olhos da política, cresce entre pelos e ruas e chega, sem alarde, ao corpo humano. Chamam de esporotricose. No Rio Grande do Norte, os números sobem. Os protocolos falham. A resposta hesita. Não se trata de uma epidemia de grande impacto, mas de um sintoma. Não da doença, mas do modo como a saúde é tratada: em pedaços.

Foi esse sentimento que uniu médicos, biólogos, ecólogos e veterinários em torno de uma pergunta: como conter um problema que não reconhece os limites entre espécies? Da pergunta surgiu um grupo e, dele, uma prática. O Grupo de Estudo e Ações em Saúde Única (GEASU-RN) nasce como reação, mas se move como proposta. Fundado há um ano, em maio de 2024, a ação científica se consolida como espaço de pesquisa, extensão e formulação de políticas em Saúde Única.

A ideia não é nova, mas ainda caminha na contramão da tradição biomédica. Saúde Única reconhece que a saúde de humanos, animais e ambientes compõe um mesmo sistema. Não são esferas separadas, mas dimensões interligadas. Um vírus que sai da floresta não migra sozinho: ele vem com desmatamentos, com desequilíbrios ecológicos e com desigualdades, resultantes do capitalismo predatório. Prevenir surtos, então, não é apenas tarefa de médicos. Exige florestas preservadas, alimentos seguros, saneamento, clima estável e vínculos entre saberes.

A médica Andreia Nery, professora do Departamento de Infectologia (Dinfec/UFRN), fundadora e coordenadora do grupo, descreve essa abordagem como uma ideia antiga, com raízes ancestrais. Para a pesquisadora, Saúde Única é um conceito ameríndio que recusa o protagonismo humano na história do planeta. “Temos menos de 200 mil anos”, ela lembra. “As primeiras bactérias têm 3 bilhões. Os dinossauros viveram aqui por cerca de 150 milhões de anos”, reforça.

Pesquisadores do Geasu em reunião com o vice-reitor, Henio Ferreira de Miranda, e a direção do Centro de Ciências da Saúde

Segundo Andreia, reconhecer essa linha do tempo exige da humanidade uma nova ética, menos centrada em si e mais comprometida com a continuidade da vida como um todo. Nessa lógica, o GEASU surge como uma resposta à crise planetária, que abrange aspectos ambientais, sanitários e climáticos. Além disso, representa um gesto político alinhado aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e do Milênio (ODM), bem como ao papel da universidade pública. “O grupo promove a interação entre diferentes áreas para propor estratégias criativas de enfrentamento”, destaca. A pesquisadora também reforça que o SUS é uma conquista democrática, um terreno fértil que possibilita a criação de iniciativas como o GEASU.

Para o biólogo Rafael Bastos, professor do Departamento de Microbiologia e Parasitologia (DMP/UFRN), fundador e vice-coordenador do grupo, a força do GEASU está na pluralidade de vozes. “Diversos pesquisadores se unem a integrantes dos serviços públicos municipal e estadual, além de outros profissionais, para estudar, enfrentar e prevenir problemas utilizando uma visão mais abrangente.”

O pesquisador destaca marcos do primeiro ano, como o crescimento do grupo com novas áreas do conhecimento, a inclusão no Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da UFRN e o aumento das discussões sobre o tema dentro e fora da universidade. Rafael afirma que o entendimento da interdependência entre ambiente, saúde animal e saúde humana é essencial para lidar com os desafios sanitários do presente e do futuro. “Somente por meio de uma abordagem integrada e abrangente seremos capazes de preveni-los e solucioná-los de forma eficaz”, acrescenta.

“O grupo é inovador, o primeiro na universidade com esse propósito”, afirmou a médica Marise Reis, professora do Dinfec/UFRN, ao destacar o papel da iniciativa que integra saúde humana, animal e ambiental dentro do conceito de saúde única. Segundo Marise, também fundadora do GEASU, o primeiro ano de atuação foi marcado por autoconhecimento, crescimento coletivo e uma série de ações, especialmente voltadas à saúde animal, com a realização de eventos científicos e atividades junto à comunidade. “A gente costuma dizer que estamos em um momento de aprendizado, de entender o nosso papel”, disse.

Pesquisadores em reunião de planejamento

Marise, que sempre trabalhou com saúde humana, aponta que a proposta amplia o olhar: “Usávamos o ambiente apenas como contexto conceitual, mas o foco era o tratamento do homem”. Para ela, a saúde única representa uma mudança de paradigma ao reconhecer que ambientes e animais saudáveis são fundamentais para a qualidade de vida humana.

Cintia de Sousa Higashi, bióloga da Secretaria de Estado da Saúde Pública do Rio Grande do Norte (Sesap), destaca a importância do GEASU para a pasta. Segundo a pesquisadora, o grupo viabiliza a reunião de instituições e profissionais essenciais para o trabalho desenvolvido. “Temos que ter um espaço de discussão, troca, alinhamento entre vários órgãos públicos e instituições de pesquisa. Além disso, o GEASU dá visibilidade e capilaridade ao que fazemos”, enfatiza.

Embora a parceria com a universidade já existisse desde 2016, Cintia ressalta que o GEASU possibilitou a formalização do trabalho em grupo e a ampliação da atuação da equipe. “Acho que o projeto vai potencializar muito o nosso trabalho, vai nos fortalecer”, finaliza.

Renata Antonaci Gama, bióloga e professora do DMP/UFRN, destacou o caráter interdisciplinar e colaborativo do Grupo de Estudos e Ação em Saúde Única (GEASU), criado há um ano na universidade. Com reuniões mensais, o grupo reúne pesquisadores de diferentes áreas para pensar ações, elaborar projetos e produzir conhecimento voltado à integração entre saúde humana, animal e ambiental. “Estamos contentes em celebrar este primeiro ano, pois entendemos que estamos apenas iniciando uma trajetória de mudança e impacto”, afirmou. Segundo Renata, o GEASU tem contribuído para fortalecer a saúde pública por meio de práticas e saberes compartilhados.

Parte do núcleo fundador do Geasu, após atividade de planejamento – Foto: Geasu

O GEASU-RN reúne professores e pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, servidores das secretarias estadual e municipal de saúde, profissionais da vigilância ambiental e do controle de zoonoses, além de estudantes da graduação e da pós-graduação. Participam do grupo integrantes dos departamentos de Infectologia, Microbiologia, Parasitologia, Ecologia, Comunicação Social, Engenharia Química e Morfologia da UFRN, bem como técnicos da Secretaria de Estado da Saúde Pública do Rio Grande do Norte e da Secretaria Municipal de Saúde de Natal. A composição diversa garante ao grupo uma atuação interdisciplinar e multissetorial, essencial para enfrentar os desafios complexos propostos pela abordagem da Saúde Única.

Além do óbvio

Mas o grupo vai além das doenças. Trata da linguagem com que se nomeiam os problemas. Em reuniões mensais, os integrantes discutem conceitos, leem dados, organizam eventos. Falam de ecossistemas, mas também de decisões políticas. Falam de ciência, mas não esquecem o campo simbólico onde se constroem as narrativas sobre o que importa. Falam de zoonoses, mas também de comunicação — aliás, esta é uma parte importante, realizada em parceria com a Superintendência de Comunicação (Comunica/UFRN).

Professora Andreia Nery durante palestra sobre Saúde Única – Foto: Geasu

A metáfora mais frequente nas falas dos integrantes é a do organismo. Não apenas o organismo biológico, mas o social, o institucional, o planetário. Em um organismo, não se pode tratar apenas um sintoma: é preciso olhar o todo. O GEASU, então, não se organiza como um projeto, mas como um sistema. Não se limita a um problema, mas se orienta por uma ética: a de que toda saúde é compartilhada.

Essa ideia ainda enfrenta resistências. Parte do campo da saúde coletiva critica o modo como o conceito de “Uma Só Saúde” foi institucionalizado no Brasil. Decretos federais recentes não mencionam o SUS, ignoram os conselhos de participação social e se apoiam em estruturas tecnocráticas. Para setores mais críticos, a proposta corre o risco de esvaziar os avanços políticos conquistados desde a Constituição de 1988. O risco maior, alertam, é transformar uma abordagem interdependente em nova forma de fragmentação.

O GEASU não ignora esses tensionamentos — mas insiste em operar entre eles. Não é um espaço de neutralidade. É um espaço de construção. Cada ação do grupo reabre a pergunta inicial: como lidar com uma saúde que não se deixa cortar em partes? A resposta não vem como fórmula. Vem como prática, como rede, como tentativa. Num mundo em que o colapso ambiental se anuncia como crise sanitária, pensar a saúde como sistema talvez não seja apenas uma escolha. Talvez seja a única forma de evitar que os sintomas se tornem definitivos.

Reforçando o conceito

Para não restar dúvidas, Saúde Única é uma abordagem que reconhece a interdependência entre a saúde humana, a saúde animal e a saúde ambiental. O conceito parte da constatação de que as fronteiras entre essas dimensões são artificiais diante dos desafios contemporâneos. Epidemias, zoonoses, contaminações, mudanças climáticas e resistências microbianas não respeitam os limites entre espécies ou disciplinas. Por isso, Saúde Única propõe a colaboração entre áreas como medicina, medicina veterinária, ecologia, biologia, engenharia sanitária, ciências sociais, ciências atmosféricas e do clima, e agroecologia para compreender e enfrentar os problemas de forma integrada.

A Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Mundial da Saúde Animal (WOAH), a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) reconhecem esse modelo como essencial para prevenir novas pandemias, reduzir riscos sanitários e promover o bem-estar coletivo. No Brasil, o conceito se articula com o Sistema Único de Saúde (SUS), com ações de vigilância em saúde, educação ambiental, controle de zoonoses e políticas públicas multissetoriais. Saúde Única não é apenas uma forma de ver o mundo, mas uma estratégia de ação em um planeta marcado por conexões profundas e vulnerabilidades comuns.

Combatendo a esporotricose

Uma das ações em andamento no escopo do GEASU é o projeto de enfrentamento da esporotricose no Rio Grande do Norte. A doença, provocada por fungos do gênero Sporothrix, afeta sobretudo felinos e pode ser transmitida para humanos por arranhões ou mordidas. Com o crescimento de casos em áreas urbanas, a esporotricose exige uma resposta que vá além da medicina humana. O projeto parte dessa premissa e propõe uma abordagem integrada entre saúde pública, medicina veterinária, ecologia e políticas de cuidado animal.

Projeto esporotricose é uma das ações do Gesau

A pesquisa, aprovada pela Chamada Nacional 34/2024 do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), envolve professores da UFRN, técnicos da Secretaria de Estado da Saúde Pública (Sesap) e da Secretaria Municipal de Saúde de Natal. A proposta inclui visitas domiciliares, entrevistas com moradores, capacitações de agentes de saúde, mapeamento de casos e análises laboratoriais. A iniciativa já percorre bairros da zona Oeste de Natal e amplia o olhar sobre os contextos sociais e ambientais em que a doença se propaga. Gatos abandonados, lixo acumulado e falta de informação criam o cenário ideal para o avanço da infecção.

Os dados iniciais apontam para a urgência de estratégias combinadas. De um lado, políticas públicas de controle populacional de animais. De outro, formação continuada para profissionais da saúde e vigilância ambiental. A esporotricose se alastra silenciosa porque circula sob o silêncio da desinformação, da negligência e da fragmentação institucional. O GEASU rompe com essa lógica ao reunir diferentes saberes para construir intervenções conjuntas e duradouras.

A expectativa dos pesquisadores é que o projeto sirva de modelo para outras cidades brasileiras. Ao articular universidade, serviços públicos e comunidades, a ação evidencia o papel estratégico da Saúde Única como fundamento de políticas públicas. A doença é o ponto de partida. O destino é a construção de um ecossistema de saúde que conecte ciência, território e compromisso ético com todas as formas de vida envolvidas. Nesse percurso, o GEASU transforma o enfrentamento da esporotricose em laboratório vivo de um futuro mais integrado. LEIA NO PORTAL UFRN

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