Se hoje muitas jovens se beneficiam de movimentos que promovem o autocuidado, o respeito com a saúde e a discussão de pautas femininas nas redes sociais, foi porque mulheres como Aline Souza já estão nesta luta há décadas. Escritora, pesquisadora sobre democracia e especialista na produção de conteúdo de gênero, ela vem de uma geração que precisou nomear as violências e as opressões provocadas pelo machismo.
Inquieta desde a juventude, escreveu O Grande Pacto com o objetivo de impor mais uma vez sua voz contra a sociedade patriarcal e capitalista, que oprime os corpos afeminados. Na obra, traz um conjunto de textos que escreveu ao longo dos anos sobre temas como o trabalho, a religião, o amor, a infância e os mitos de Eva e Pandora – sempre entrelaçados às diferenças de gênero no Brasil.
“Extravasar a minha voz é um grito de raiva também, significa um chamado para outras mulheres, um convite ao despertar. Afinal, o patriarcado não se sustentaria por tanto tempo e de modo tão profundo se não tivesse a conivência das mulheres por gerações e gerações. Esse é o grande pacto que o livro apresenta”, diz a autora.
Em entrevista, ela fala sobre a literatura como ferramenta de encorajamento e explica o acordo silencioso para a manutenção das estruturas opressoras da sociedade. Leia:
1 – “O Grande Pacto” foi sua maneira de “gritar e colocar a voz no mundo”. Que voz é essa que precisou ser extravasada pela escrita?
Aline Souza: Eu acredito que é a voz agoniada da opressão que a gente vive desde o momento que a gente nasce mulher nesse mundo. Os corpos afeminados, os corpos que são ditos como do sexo frágil, desde o momento que nascem e se constituem dentro do arquétipo feminino, são perseguidos. É insuportável viver essa opressão sem muitas vezes saber dar nome a ela, sem reconhecer quando ela é praticada.
É revoltante perceber que todos ao redor normalizaram essa opressão, inclusive outras mulheres. Extravasar a minha voz é um grito de raiva também, significa um chamado para outras mulheres, um convite ao despertar. Afinal, o patriarcado não se sustentaria por tanto tempo e de modo tão profundo se não tivesse a conivência das mulheres por gerações e gerações. Esse é o grande pacto que o livro apresenta.
2 – A obra é uma seleção de textos que você escreveu durante décadas de sua vida. A partir desse compilado de textos, qual a visão que você tem sobre quem você era há duas décadas e quem você é hoje? De que forma isso se relaciona com as trajetórias das mulheres na nossa sociedade?
A.S.: Percebo que eu já tinha uma maturidade diferente para as meninas da minha idade há 20 anos. Eu sempre me preocupei por temas coletivos e era afetada por questões sociais, uma preocupação que não se refletia em outras amigas daquele período. Acho que o que mudou foi um pouco da inquietude e da ansiedade que eu tinha, uma certa pressa de viver as coisas, uma intuição que me dizia para fazer logo o que precisava ser feito. Também acredito que a raiva interna que carreguei por muito tempo foi transmutada de alguma forma.
Vejo que hoje, com a velocidade com que o pensamento feminista e as pautas dos direitos humanos chegam, via redes sociais, para as meninas da nova geração, fez com que elas fossem poupadas de muitos erros e lágrimas. A minha geração teve que descobrir e desnudar na marra esses temas indo estudar e conhecer mais para aprender a dar nome às opressões do machismo. Hoje isso está muito pronto nas redes sociais, existem muitos conteúdos bons sobre autocuidado, sobre a necessidade de respeitar o nosso ciclo e o nosso tempo, sobre organização política feminista e direitos das mulheres… o alcance disso é fenomenal. As coisas estão mudando. Ainda bem!
3 – Você se inspirou em várias autoras, como Clarice Lispector, Hilda Hilst, Lélia González e bell hooks. De que maneira os pensamentos dessas escritoras e as ideias que elas defendem estão inseridas em sua própria obra?
A.S.: Os aspectos mais subjetivos de ler o mundo foi algo que Clarice e Hilda muito me inspiraram. São as duas escritoras mais incríveis que tiram ideias geniais ao observar a existência de um ovo, um besouro, uma flor. Outro dia fiquei alguns bons momentos vendo a luta de uma aranha com um besouro que caiu na sua rede na soleira da porta da minha varanda. Também lembro de uma tarde em que um besouro ficou de pernas para cima e levou horas tentando se desvirar. Era uma cena magnífica.
Quantas vezes nós mulheres não tivemos que lutar contra a morte? Lutar para existir? Toda mulher é uma sobrevivente. A descoberta do pensamento feminista na minha vida, algo que se deu bem mais tarde, me trouxe outras autoras e apresentaram a linda obra do feminismo negro. Por exemplo, a visão sobre o amor que a bell hooks tem intercalada com os aprendizados do budismo é genial.
4 – O nome do livro é “O Grande Pacto”, que, no último capítulo, você explica que seria o acordo das mulheres com o patriarcado. A sociedade brasileira já avançou em muitos aspectos, mas a estrutura patriarcal permanece. Por que acha que isso ocorre? É possível que as mulheres se vejam livres desse pacto? Como?
A.S.: Não só na sociedade brasileira permanece nesse pacto, como na América Latina e no mundo. Apesar dos avanços em países vizinhos como na questão da legalização do aborto, por exemplo, também vemos o crescimento da extrema direita ultraconservadora e cristã fundamentalista em muitos lugares. Acabamos de derrotar um dos seus exemplares nas urnas, mas não o derrotamos nas mentes e corações. As mulheres feministas, nesse contexto, andam com um alvo nas costas todo o tempo, não é mesmo?
É muito triste, mas algumas mulheres fazem esse acordo tácito com o modelo patriarcal de sociedade porque é mais fácil, viver nessa redoma da falsa segurança; elas se importam demais com o que vão dizer sobre ela na igreja, na padaria, na vizinhança… Apenas cumprem o que delas é esperado. Muitas estão apáticas e não são capazes de enfrentar seus medos; há mulheres que se negam por toda uma vida e assim negam também as outras, morrem em vida e, por vingança de se auto anularem, normalizam a morte de outras que são diferentes delas (ou até mesmo iguais). Matam com julgamentos, com a permissão de violências corriqueiras e contínuas, matam quando riem de piadas machistas dos filhos, irmãos e maridos. É uma ferida coletiva e milenar, eu diria.
A estrutura patriarcal também permanece porque há historicamente pouquíssimas mulheres nas instâncias do poder. No local em que se fazem as leis no Brasil e onde se decidem os direitos das pessoas e políticas públicas, até pouco tempo atrás não havia banheiro feminino. Por que será? Pesquisas mostram uma dura verdade: mulheres não votam em mulheres. Estamos mudando essa mentalidade, mas não é fácil. Muitas de nós foram mortas, assassinadas pelo que ficou conhecido como violência política de gênero. A morte de minha amiga e companheira de luta, Marielle Franco, despertou em muitas feministas o desejo de ocupar a política. É lindo ver esse movimento acontecer, ainda que saibamos que o caminho é longo.
As mulheres se verão livres desse pacto quando todas perceberem que não há palácio, joias caras, privilégios ou status capazes de comprar a liberdade. Enquanto houver uma mulher que se vende em troca disso, dificilmente vamos vencer o patriarcado. Enquanto isso, a gente escreve e tenta mostrar o quão nocivo, nefasto e mortífero é um mundo dominado pelas desigualdades de gênero. Até o dia em que seremos livres.
5 – Você também traça paralelos entre os mitos de Pandora e Eva com os dias atuais. Como as histórias dessas personagens, em que ambas carregam a culpa de levar o mal para o mundo ou de ser “pecado original”, se relacionam com as mulheres no mundo atual?
A.S.: Se você é uma mulher, certamente já ouviu alguma dessas palavras direcionadas a você: “puta, piranha, traidora, vadia, vagabunda, interesseira, pistoleira, golpista”. O julgamento social recai sobre sua carne de uma forma muito mais cortante. Os mitos de Eva e Pandora são, na verdade, a grande afronta que eu faço a tudo isso. Pois, se assim nos querem, assim podemos ser, porque também somos tudo isso. Somos múltiplas, diversas, divinas. Nem puta, nem santa. É uma forma de encarar quem nos quer colocar em caixinhas, nos moldar, nos colocar dóceis. A nossa alegria, a nossa saúde, o nosso vigor e a nossa lasciva, tudo isso é revolucionário.
O útero é o local de morada de cada ser humano que chegou nesse planeta ao longo dos tempos imemoriais. Não viemos de costela nenhuma de Adão. Todos vieram do nosso útero. A única passagem possível entre esse e outros mundos. Por que querem nos aniquilar? Que ódio é esse que as mulheres livres despertam? Que bíblia é essa escrita por homens que condenou os escritos apócrifos para que a humanidade pós era cristã não tomasse conhecimento? Há muitas camadas por detrás desses nomes e eu convido os leitores a tecerem suas interpretações. No fundo, se mãe de mulheres eu fosse, daria esses nomes para minhas filhas.
6 – Seu livro também trata de amor, religiosidade e infância, ao mesmo tempo que levanta reflexões sobre esses temas. Para você, a literatura pode ser uma ferramenta de libertação das estruturas sociais que nos cercam? Se sim, em que aspectos?
A.S.: O livro fala desses temas sim, mas também aborda uma crítica anticapitalista bastante atual quando tive minhas reflexões pandêmicas, com um olhar ambientalista mais profundo sobre o planeta, Gaia. Deusa. Além disso, ele tem passagens hilárias como da “Reza à Magia”, que diz “devemos tirar Jesus da cruz” ou em “Clap Clap! Palmas para quem?”, onde eu conto uma fase em que eu ia para as missas dominicais apenas para bater palmas, um dos meus hobbies favoritos. Eu sempre fui meio debochada com essa parafernália ritualística da igreja desde muito jovem.
A literatura me salvou de tantas formas diferentes. Foi um jeito de me aproximar de minha mãe, que era muito ocupada e trabalhava demais. Também me salvou de uma depressão juvenil, preencheu a vontade de fugas e aventuras que a gente quer viver, mas não pode. Ainda. Na minha infância, enquanto as outras meninas respondiam o que queriam ser com “bailarina, médica, pianista”, eu sempre desejei ser escritora. As palavras são para mim uma forma de expressão que uso para me libertar das estruturas sociais e das amarras que nos colocaram ao longo da vida. Então eu acho que cresci um pouquinho ao escrever esse livro. Ninguém sai do mesmo jeito que entrou após escrever um livro.
Sobre a autora: Nascida em Monte Claros, em Minas Gerais, a jornalista Aline Souza mora na capital do Rio de Janeiro, onde atua na comunicação de organizações da sociedade civil. Mestre em Comunicação, Imagem e Som pela Universidade Federal Fluminense, pesquisou a produção audiovisual latino-americana de movimentos sociais. No momento, dedica-se à produção de conteúdo e estudos sobre gênero, direitos humanos, tecnologia, democracia e impacto social. Trabalha com palavras há quase 20 anos, mas O Grande Pacto é sua estreia na ficção; compila contos e crônicas escritos nas últimas décadas.
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