Por Cyro Souza
Já pensou em contribuir para a ciência através de um videogame? Foi isso que mais de 100.000 pessoas espalhadas por todo o planeta fizeram em 2016 quando participaram de um experimento internacional que testou os limites da física quântica. O Grande Teste de Bell reuniu cientistas de diversos países, inclusive do Brasil, para uma série de experimentos quânticos em laboratórios ao redor do planeta, controlados por decisões feitas por voluntários.
O teste de Bell (que homenageia o físico John Stewart Bell) cria pares de partículas, como as de fótons, emaranhadas entre si e as envia para locais diferentes, onde propriedades das mesmas partículas, como cor e tempo de chegada, são medidas.
Se os dados colhidos nos pares mostrarem correlações fortes o suficiente, isso implica em algo surpreendente: ou as medições de uma partícula afetam instantaneamente a outra ou, mais estranho ainda, as propriedades nunca existiram, mas foram criadas pela própria medição. As duas possibilidades contradizem o realismo local, que é a visão de Albert Einstein de um universo independente de nossa observação, onde nenhuma influência pode viajar mais rápido do que a luz.
O Grande Teste de Bell pede a voluntários, conhecidos como Bellsters, que escolham medidas para fechar a assim chamada brecha da liberdade de escolha – a possibilidade que as próprias partículas influenciem a escolha de medidas. Tal influência, se existisse, poderia invalidar as conclusões experimentais. Seria como pedir para estudantes escreverem as próprias questões em seus exames.
Essa brecha, também, não pode ser fechada através de dados ou de geradores de números aleatórios, isso porque sempre existe a possibilidade de que esses sistemas físicos sejam coordenados com o emaranhamento das partículas. A escolha humana introduz o elemento de livre-arbítrio, pelo qual as pessoas podem escolher, independentemente, do que as partículas estejam fazendo.
O projeto foi organizado pelo Instituto de Ciências Fotônicas da Espanha (ICFO), com a participação de outros 12 laboratórios e de pesquisadores de vários países, incluindo o professor Rafael Chaves, do Instituto Internacional de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (IIF-UFRN). Os voluntários criaram mais de 90 milhões de bits através de um jogo online, criado para coletar cliques aleatórios dos participantes e dessa maneira poder testar a teoria.
De acordo com o pesquisador do IIF-UFRN, Rafael Chaves, “esse experimento teve um significado duplo, tanto por possibilitar a realização de um novo tipo de teste de Bell, assim como por ser também um projeto de divulgação científica”.
O físico brasileiro explica que em um teste de Bell se faz diversos tipos de medições e a escolha dessas medições deve acontecer aleatoriamente. No jogo online as pessoas tinham que apertar teclas e as suas escolhas tinham que ser as mais aleatórias possíveis para passar de fase.
Os voluntários produziram 90 milhões de bits, criando sequências imprevisíveis de 0s e 1s. Estes bits foram então encaminhados para avançados experimentos em laboratórios espalhados por diferentes países, onde foram utilizados para ajustar ângulos de polarizadores e outros equipamentos e técnicas, com o intuito de determinar como partículas emaranhadas seriam medidas.
Os resultados, publicados na revista Nature (Challenging local realism with human choices, The Big Bell Test Collaboration), contradizem a visão de Einstein, oferecendo uma alternativa para se fechar a brecha da liberdade de escolha pela primeira vez e demonstrando diversos novos métodos para o estudo do emaranhamento e do realismo local.
“O que é mais surpreendente para mim é que o debate entre Einstein e Niels Bohr, depois de mais de 90 anos de esforço para torná-lo rigoroso e experimentalmente testável, ainda mantém um elemento humano e filosófico. Sabemos que o bóson de Higgs e as ondas gravitacionais existem graças a máquinas incríveis, sistemas físicos construídos para testar as leis da física. Mas o realismo local é uma questão que não podemos responder totalmente com uma máquina. Parece que nós mesmos devemos fazer parte do experimento, para manter o universo honesto”, afirma o professor Morgan Mitchell, líder do projeto no Instituto de Ciências Fotônicas da Espanha.
O artigo está disponível em www.nature.com/articles/s41586-018-0085-3