Pesquisas mostram que, num país racialmente dividido, descobertas sobre raízes africanas podem gerar tristeza em uns e alegria em outros
À medida que mais estadunidenses usam testes genéticos para identificar a composição dos seus DNAs, a tecnologia avança dia após dia em um país com uma profunda obsessão por raça e mitos raciais. No entanto, quanto mais os exames são feitos, mais cidadãos outrora identificados como estadunidenses europeus descobrem que boa parte dos seus ancestrais era africana.
Para quem fica surpreso com a herança genética, a novidade pode significar uma complicada reconfiguração da própria identidade. É o caso de Jessica McBridey, de Nokesville, no estado de Virgínia, que descobriu que possui sangue africano em um teste de DNA recente.
Ela contou ao jornal New York Times que sua adolescência não poderia ter sido mais “branca”: nos anos 1970 e 1980, em uma cidade rural e pequena do interior, ela ia para a escola com filhos de fazendeiros que ouviam música country e faziam piadas racistas com os poucos colegas negros. “Eu era basicamente enraizada como uma menina branca do Sul”, afirmou.
McBridey foi fazer a graduação na Universidade de Michigan, onde sua colega de quarto era negra, assim como os amigos e mesmo o namorado. Foram eles que notaram que a “menina do Sul” tinha características africanas nas feições do rosto e no cabelo. “Eu ficava me perguntando: ‘Quem é você? Qual é sua etnia?”, revelou.
Enquanto afro-estadunidenses geralmente assumem que eles carregam DNAs não africanos, já que muitas escravas negras nos EUA foram estupradas pelos negociantes e senhores brancos, muitos estadunidenses brancos, como McBridey, cresceram acreditando que sua ancestralidade é totalmente europeia.
Por cerca de US$ 100 (R$ 390), é fácil para qualquer um fazer o teste e receber um relatório da composição genética. Empresas do setor nos EUA oferecem uma lista de países ou regiões onde os traços genéticos predominantes coincidem com os dos antepassados (não há DNA para raça, porque não existe um marcador genético para essa categoria). No Brasil, um exame de DNA pode ser feito por R$ 1.000.
Nos anos recentes, estadunidenses multirraciais entraram cada vez mais na consciência nacional. Entre 1970 e 2013, a porção de bebês vivendo com pais de raças diferentes cresceu de 1% para 10%, segundo o Pew Research Center. De 2010 para 2016, os que se identificam como herdeiros de duas ou mais raças subiram para 24%, de acordo com o censo nacional. Esse pulo, segundo especialistas, tem muito a ver com a mudança na forma como as pessoas nos Estados Unidos se identificam – como uma população racialmente mista.
Mas quando se volta algumas gerações para trás, as pessoas ainda são tomadas de surpresa. Embora existam poucos dados comparando as percepções das pessoas com a realidade de sua composição étnica, um estudo feito em 2014 pela 23andMe, que oferece o exame de DNA no país, mostrou que cerca de 5,2 mil – ou 3,5% – dos 148,7 mil estadunidenses autoidentificados como totalmente europeus descobriram, com os testes, que tinham 1% ou mais de ancestralidade africana. Em outros termos: eles provavelmente tiveram um ancestral negro em uma das seis gerações anteriores.
A descoberta possibilita uma série de emoções: dada a história de escravidão e racismo nos EUA, descobrir que uma parte do sangue é africana faz com que algumas pessoas se sintam vulneráveis, mesmo defensivas, enquanto outras comemoram.
No DNA Discussion Project, uma iniciativa da Universidade de West Chester, na Pensilvânia, que entrevista as pessoas sobre suas percepções sobre suas composições genéticas antes dos testes de DNA, 80% delas se autoidentificavam como “brancas”. Delas, dois terços viam a si mesmas como compostas de uma única raça – são as que mais provavelmente se chocam com a descoberta da presença geracional negra. Quando um entrevistado diz, antes do exame, que se identifica com mais de uma raça, a tendência é de que a descoberta o deixe feliz.
Uma das defesas de quem fica infeliz é dizer que a identidade branca supera o DNA. Se o resultado do teste é tão diferente do senso de si mesmo, eles acabam por desprezá-lo. No ano passado, ficou famoso nas redes sociais o caso de um supremacista branco que descobriu que tinha raízes africanas por meio do exame e publicou um texto na internet afirmando que a empresa responsável pela pesquisa genética era parte de uma “conspiração judaica” para “difamar, confundir e suprimir jovens brancos a nível de massa”.
Membros de grupos nacionalistas brancos dos EUA alertam às pessoas que descobrem heranças não brancas para confiarem mais na genealogia ou no “teste do espelho” (“Quando você olha no espelho você vê um judeu? Se não, você está ‘bem’”). “Muitos brancos criam uma nova história e dizem: ‘Eu ainda vou chamar a mim mesmo de ‘branco’, ou ‘Eu ainda vou me considerar italiano'”, contou Anita Foeman, diretora do DNA Discussion Project. “Eles começam a ver raça menos como um fator genético e mais como uma questão de cultural e aparência física”, completou.
Segundo Foeman, mulheres tendem a ser mais flexíveis em suas descobertas genéticas, enquanto homens jovens brancos quase nunca aceitam os resultados do testes.
Em uma era em que a tecnologia pode ser parcialmente culpada pela polarização social, é irônico que um avanço tecnológico esteja ajudando a romper fronteiras antes tão bem delimitadas. Como os clientes podem se conectar com seus parentes nos registros de DNA, alguns brancos ficam fascinados em descobrir quatro ou cinco primos que são negros.
Os resultados dos testes podem apresentar um enigma intrigante: quando uma quantidade significativa de DNA africano se apresenta em uma presumida pessoa branca, “há uma história – se um pai se mudou ou um avô morreu jovem”, contou Angela Trammel, uma genealogista investigativa da Universidade de Washington. “É sempre uma história misteriosa, de desaparição, por exemplo, ou algo do tipo”, continuou.
É o caso de McBridey, hoje com 46 anos: o teste a ligou com seu avô, que se mudou do seu estado-natal, Georgia, e começou uma nova vida como “branco” em Michigan. Ele se casou com uma branca no novo destino e, do relacionamento, nasceu seu pai. Na pesquisa sobre sua genealogia após a universidade, ela descobriu que o irmão do seu avô – seu tio-avô – continuou se identificando como um afro-estadunidense em Macon, no estado de Georgia, e se tornou um famoso arquiteto. O exame do DNA dela mostrou que 8% da sua composição genética é africana.